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TÍTULO: Desporto e Dinheiro
LOCAL: Portugal - Famalicão
DATA: 1997
INFORMANTE
SEXO: M
IDADE: 68 anos
ESCOLARIDADE: 4 anos
PROFISSÃO: Reformado de hotelaria
- sabe que eu ainda lhe queria perguntar uma coisa. disse-me que, portanto, que praticou desporto
-> sim senhora.
- durante anos, não foi?
-> sim.
- eh, nessa altura, o desporto era encarado de uma maneira muito diferente
-> era encara[...]
- relativamente, não é,
-> não ganhávamos nada.
- não se ganhava nada.
-> jogávamos de graça e tínhamos isto: não havia iluminação nos estádios, como há agora
- hum, hum.
-> íamos treinar sem relva, e como trabalhávamos, às sete e meia da manhã estávamos equipados no campo. no Verão, ainda é fácil
- claro!
-> mas no Inverno, com aquelas camadas de neve e, como vinha a lama, e depois vinha a neve, nós a andar parecíamos que estávamos a andar em cima de cascalho. ficava vidrado. custava muito. mas tínhamos amor à camisola.
- pois. era verdadeiro
-> mas era isto mesmo.
- espírito desportivo, não é,
-> é. conheci grandes treinadores, Roberto Kell, que foi o famoso treinador dos violinos do Sporting, o doutor Eduardo Lemos, foi jogador da Académica, Cesário, que por acaso também no fim da vida dele, depois de abandonar mas que a gente de Famalicão nunca o abandonou, foi um treinador que f[...], esteve, esteve rico, mas dava tudo. e na hora que ele precisava nunca foi abandonado. e nós, os amigos de Famalicão, pusemo-lo aqui, quase de graça, vá, que ele tinha uma reformazita pequena, e depois conseguimos-lhe um lugar no lar. e foi lá onde ele faleceu. hoje tem, no cemitério, que é aqui em Santiago de Antas, que é esta freguesia, e ele está lá com um jazigo digno
- hum.
-> de, daquilo que ele foi.
- sim senhor. portanto, era o verdadeiro espírito desportivo nessa altura!
-> foi des[...], desportivo. quantas vezes, que, aquilo havia muita falha de dinheiro. iam os jogadores, claro que tivémos que ter um, jogadores, já naquela altura começou-se a fazer contratos, de argentinos, de espanhóis,
- hum, hum.
-> mas, jogadores baratos. mas chegava-se ali perto do Natal, já não havia dinheiro para lhes pagar. e então como nós tínhamos um restaurante, fome eles nunca passaram. porque nós davamos sempre de comer.
- hum, hum, hum.
-> além de jogarmos de graça, ainda alimentávamos os jogadores.
- hum.
-> porque havia, havia muito gosto, muito, havia muita amizade, muito, eles nunca foram abandonados. e mesmo depois de irem embora, tinham sempre dinheiro, nunca ficaram ao abandono.
- não acha que o, agora, o desporto é mais um negócio do que outra coisa?
-> isso é, é, eu para mim é pior que um negócio. é uma máfia.
- ham, ham.
-> não há honestidade, e está provado e mais que provado que os árbitros que se vendem, porque eu sei de casos, é verdade, os árbitros vendem-se, os jogadores vendem-se, e não há aquela... espírito desportivo que devia haver. embora eles ganhassem, que eu sou de acordo que deviam ganhar.
- claro.
-> ganham demais, é um erro. e quando eles dizem que o período de, de, que estão no auge e para ganhar dinheiro que é curto, mas esse, com essa, essa passagem que eles têm, só num ano que eles estivessem a ganhar, há operários que não ganham em toda a vida.
- exactamente.
-> portanto, eles que não venham com essas desculpas. agora o que eles deviam era sabê-lo poupar, que eles esbanjam o dinheiro. o dinheiro é lançado fora. e eles só têm vícios e... isso é que está mal. porque m[...], há, há atletas que estão muito bem na vida, e mesmo aqui em Famalicão, aqui não conheço nenhum que esteja mal, que aqui as pessoas conseguiam sempre dar-lhes emprego, tinha, todos bem. não conheço nenhum que acabasse aqui na miséria. também as pessoas não deixavam. há um caso em Famalicão, foi dum jogador que foi irradiado, era o Francisco Pires, que veio do Benfica. foi um grande atleta, um jogador famoso. e há um suborno aqui no Famalicão, que é com o Oriental, que no jogo que vem aqui fazer
- hum.
-> foram ter com ele e deram-lhe cinco mil escudos para ele se vender. e ele chegou ao presidente e, e foi-lhe contar. e o presidente disse "olha, guarda o dinheiro e vai para o campo e joga". o que é que acontece? ele foi para o campo e por acaso não conseguiu brilhar, porque estava com aquela, a pensar no, no que se passou, não é, e como não conseguiu jogar. o presidente, o Famalicão nessa altura perde o jogo e o presidente... divulgou o caso porque desconfiou que havia outro jogador que também estava vendido, mas que não sabia. a judiciária veio cá, irradiou logo o Francisco Pires, foi irradiado, que era - para mim era o melhor jogador português naquele tempo - foi irradiado, e mesmo assim as pessoas de Famalicão, dele irradiado, deram, arranjaram aqui uma pensão, pagavam-lhe - era o presidente o doutor Eduardo Lemos - dava-lhe os medicamentos, que ele depois adoeceu do, dos pulmões, e ele, como era assim meio, um pouco, um pouco da vida nocturna, casado, foi para Lisboa, para jogar nos Corporativo dos Correios, CTT
[...]
- há um maior espírito de ligação entre as pessoas.
-> há. há aqui um senhor, que foi das f[...], maiores fortunas que temos aqui em Famalicão. o pai dele deixou-lhe uma fortuna. era fornecedor, era, tinha... carnes de porco, e ele fornecia o exército - isto já há quarenta anos - e o pai faleceu e os filhos ficaram todos ricos. mas j[...], eles julgavam que o dinheiro que nunca acabava.
- pois é.
-> iam ao casino todos os dias, e eram naquela altura três irmãos, levavam dez contos por dia, cada um para jogar. isto há quarenta anos, veja o que isto era. e eles julgavam que nunca mais se acabava. abandonaram o serviço. o que é que acontece? empregados deles, que naquela altura andavam ali de socos e... hoje têm aqui uma fortuna doida, no mesmo isto a que se estabeleciam, lindamente, e conseguiram fazer fortuna. e eles, estão todos aí abandonados, a viver de esmolas. mas mesmo assim, e esse... - que é solteiro, deve ter agora sessenta e oito anos - está no lar dos idosos, porque as pessoas que o conheceram meteram-no lá - no melhor que há é ali - não lhe falta nada. e quando há festas, os amigos lá o vão buscar, quando é o dia dos amigos de Famalicão e isso - e ele vive como um senhor, embora não fosse aquele senhor onde ele chegasse - que ele já nessa altura não deixava ninguém pagar nada. nós íamos com ele fosse para onde fosse - hoje há pessoas aí com fortunas doidas que, à beira deles não eram nada. e todos viveram à custa dele. alguns reconheceram-no. há que, sempre aquele que... vai dando, ainda podia dar uma esmola grande mas vai dando p[...], lentamente, pouco.
- pois.
-> é por isso que as pessoas não olhando por a[...], por aquilo que os outros lhe deixaram, podem acabar mal, é sempre por causa deles
- ah, pois.