TÍTULO: Os Amores de Camilo LOCAL: Portugal - Landim, Famalicão DATA: 1997 INFORMANTE SEXO: M IDADE: 60 anos ESCOLARIDADE: 4 anos PROFISSÃO: Operário têxtil na reforma OBSERVAÇÕES: O informante produz "la" por "a" em "la meteram nisso"; "presigar" é utilizado num sentido metafórico - literalmente significa "acompanhar com conduto, carne" -> [...] - bom, mas, eu, a gente podia passar aqui o resto da vida a conversar, senhor Avelino -> da vida, da v[...], a com[...], a conversação - mas há uma questão que eu gostava que o senhor Avelino me dissesse -> fizesse. - que é: nós comparámos Dom Afonso Henriques em relação à sua mãe -> isso. - de certo modo, ele violou um princípio que é o princípio da obediência e do amor filial. -> filial. - e não condenamos, apenas constatamos. -> pois. - bom. Camilo Castelo Branco e Ana Plácido, de certo modo, há também ali uma violação de princípios estabelecidos. -> pois há. - como é que vamos olhar para eles? -> eu, o Camilo, admiro o Camilo e bato-lhe palmas, na parte literária. - na parte literária. -> na parte conjugal, marido e esposa, não gosto. não gosto, porque ele foi r[...], roubar uma mulher com quem vivia com outro marido. agora se a mulher fosse viúva, que ele esperasse que morresse o Manuel Pinheiro Alves como morreu muito cedo, e ele aguardasse - com certa incerteza, é claro - mas que aguardasse e que se unisse a ela, eu já não condenava. porque ela já era livre. agora ir buscar a mulher ao seio conjugal de outro homem que a amava, ou não saberia amar melhor, mas ele amava-a, já por isso casou com ela, eu acho que Camilo cometeu um grande erro. como ainda hoje muitos con[...], casais o fazem. casou a dona Ana Plácido com um homem que não, não tinha, eh, carinhos, que não sabia olhar para ela com olhos benévolos, olhos de, de, de amor, olhos de, de reverência até. mas, era o marido dela. ela tinha que ver isso antes de casar com ele. entrou na poça que gostava dele, então foi, gostou do dinheiro dele? - ninguém sabe como é que isso foi. -> ah, mas i[...], isso... é mau. - pode ter sido casada porque os pais a induziram a isso. -> sim. há casos desses. que é o, é o caso do "Amor de Perdição" com Teresa - hum, hum, hum. -> a Teresinha - a Teresa e s[...] -> com o primo - com o primo. -> com um primo. há casos desses, mas, se há casos desses ela tinha que reprovar os pais que a meteram nesse sarilho, e nunca o marido. o marido apenas foi saboreá-la porque gostava dela, dentro do matrimónio. eu penso assim. - hum, hum. -> portanto, o Camilo, para mim é um ho[...], um ser falhado, na parte do lar. é um grande homem na parte das letras, porque deu vida a muitas novelas, a muitos contos, a muitas histórias que andavam por aí, eh, apagadas, aqui no Minho, e não só, mas aqui sobretudo, na parte... minhota, e ele deu-lhe vida. com personagens, avivou, impregnou certos movimentos que a literatura alcançou outro tom que enriquece o património nacional das letras, suponho eu. - hum, hum. portanto, quer dizer o senhor Avelino então que acha que Camilo não inventou o que escreveu! -> podia ter inventado e, e, e a função do escritor também é um bocado essa. mas, foi sempre beber a uma fonte. - portanto, recriou. -> é. a uma fonte. e ele, ao, ao, ao escrever "A Brasileira de Prazins", que era uma casa abastada aqui de Landim, bastante gananciosa, que tinha muitas quintas, e o proprietário, que era um tal senhor Joaquim Araújo, eh, foi ao Brasil, e enriqueceu e veio para aqui, casou com a sobrinha, sobrinha dele mesmo, e essa sobrinha, eh, passado anos adoeceu. e ali havia uma doença implantada por ser tio com sobrinha, o sangue com sangue que não resulta muito bem. e Camilo, segundo dizem, que andava sempre a pedir dinheiro emprestado, bateu à porta dessa referida quinta, a ver se era atendido. essa quinta lá não o atendeu porque duvidava do porte dele, e ele lá não gostou porque sabia dinheiro que, que havia lá com certeza, procurou como historiador saber os motivos da família e onde lhe disseram que a fa[...], a fortuna foi adquirida no Brasil e que ele que era um homem bastante adinheirado, mas que era homem para ir ao Porto com umas côdeas de pão no bolso, para chegar a casa só comer à noite para não gastar dos grandes rendimentos que ia buscar das acções que tinha, de rendimentos através do banco... do Brasil. ele sabendo esses pormenores, viu que a mulher que passou a parte, a maior parte do tempo... adoentada, entrevada, no leito de sofrimento, começou então a desenvolver isso e escreveu a célebre "Brasileira de Prazins", que muitos dizem que até hoje até que será o melhor romance escrito por Camilo Castelo Branco, porque focou aquela parte dos liberais, desenvolveu, lá mostrou os que queria, e a ganância do povo. ah, entre eles, o, o José de Vilalva, que gostava muito, o José de Vilalva gostava muito da tal brasileira de Prazins, porque era um amor que, construído desde a adolescência, mas quando o, o, o irmão do, do, do, do pai da noiva resolveu vir para o bra[...], do Brasil para Portugal, o, o, o pai procurou desviar o coração da filha e entregá-lo ao tio, porque do José de Vilalva nunca viria os cobres tão largos para comprar quintas aqui à volta, como ele tinha. que ele tinha mais de oito quintas, naquele tempo. e portanto, houve aqui, digamos, uma ganância, hem! camuflada pelos interesses sentimentais dum lado e, eh, e impregnados do, do in[...], do, do, do, do, da mesquinhez do, do venha a nós do rendimento, e o amor deram-lhe um pontapé. de maneira que essa mulher tornou-se logo imediatamente uma infeliz porque quem ela amava a, ao fundo era o José de Vilalva. - bom, vamos voltar à dona Ana Plácido, porque é uma figura que... -> central. - por quem, é, ah, nós só temos uma vida -> isso. - e só, portanto, tudo o que podemos fazer é durante essa vida. se o Camilo foi o grande amor da vi[...], da dona Ana Plácido -> Ana Plácido. - ah, se apareceu depois dela ser casada -> sim. - mas se era a sua única oportunidade de viver esse grande amor, o que é que o homem que há e[...], dentro de si diz? -> ora bem - fora dos princípios e da moral -> sim, nós... - o que é que o seu sentimento pessoal lhe diz? -> a minha mãe dizia-me que todos os dias nasce e cresce quem melhor nos parece - hum, hum. -> uma frase que já ela ouvia quando era menina e por aí fora, não é, claro que todos os dias, ainda hoje nós mesmo, nós homens, já adultos, se formos por aí fora, com os olhos bem abertos, vemos belezas encantadoras, que nós até nem temos força de resistir. pois. mesmo hoje. nós, às vezes é muito comum dizer "um padre falhou acima, um padre fa[...]", pois ele ao ver tanta beleza, às vezes à volta dele, ele é um homem. tem um grande carácter, tem uma vocação, tem um, uma ordem religiosa, mas humanamente é um homem. - hum, hum. -> se ele começa a presigar, a saborear as belezas encantadoras que estão estampadas no rosto das jovens de dezasseis, dezassete, dezoito anos, que vêm para junto do harmónio, ou para junto do altar, adornar, decorar, cantar, dar, eh, vida ao acto do culto, ele tem que ser um homem muito seguro, senão ele estatela-se. como nós hoje, chefes de família, não sei se os senhores o são, mas sou eu - hum. -> mas nem que o sejam. ainda hoje, os senhores, nessas viagens que andam, de colheita - hum, hum. -> se realmente não for firmes interiormente o senhor estatela-se como se estatela qualquer um, porque a beleza humana está em toda a parte. se uma mulher é, é possuidora das belezas das estrelas, eh, dos cânticos dos anjos, que Deus adornou a mulher com um encanto infinito, ora nós, que se viemos ao mundo para as apreciar, temos de ser conduzidos por coisas muito mais firmes do que a beleza que nos es[...], eh, estampa logo aos olhares, senão perdemo-nos. - muito bem. -> mas nós não podemos andar atrás de coisas bonitas, só de exterioridade. nós também temos de fazer um caminho - hum, hum. -> e trilhá-lo. - sim senhor. senhor Avelino, mas o senhor mesmo disse que Deus adornou a mulher desses encantos e dessas belezas -> é verdade. - acha que Deus adornou a mulher desses encantos, e dessas belezas para nos tentar, para nos mandar para o inferno? -> não. também acho que não. - também não. -> não. deu-lhe essa beleza porque ele gostou de, de criar e de ter a criatura bela. uma flor, a humanidade, tudo belo, desde o pensar a, a, a, a tudo! quer dizer, no desejo, nos olhares, sabe que um olhar fascinante de uma mulher prende um homem. eu também fui rapaz novo e bem vi. eu às vezes era preso por um olhar e elas, até da inocência delas, mas eu, pronto, sabia, eh, colher. os senhores hoje andam a colher usos e costumes e eu também saberia colher um olhar, ou um sorriso que me... prendia. e ela sem saber estava a mandar em mim. o que eu tinha era de lá depois dar um pontapé e se quisesse seguir sempre, ou estatelar-me depois. [...] - não acha que, que devíamos ter, em relação a ela, a at[...], a atitude que Cristo teve em relação a Maria Madalena? -> sim, sim. pois. nós devemos perdoar à Ana Plácido. e eu perdoo-lhe, mas, eh, sei que ela que fez mal. - pois. -> não posso dizer que fez bem. - é que eu acho que, mais do que perdoar, devíamos compreendê-la. -> sim. mas que fez mal fez. que fez mal fez. e até, ela escrevia também bem. ela era, era uma mulher que também sabia escrever. - já imaginou o que seria a existência de Camilo Castelo Branco se não tivesse -> sim. - encontrado Ana Plácido? -> a Ana Plácido. bem... - acha que teria sido melhor ou pior? -> continuará a ser o grande boémio... citadino, como era até aí. - sim. -> pousa aqui, pousa acolá, um pouco dizia bem, um pouco dizia mal, ia aos saraus das freiras ao Convento da Avé-Maria quando a abadessa fazia anos, recitava, elas batiam palmas. no outro dia escrevia logo um romance a, a, a, "A Freira sub[...], no Subterrâneo", eh... - ham, ham. -> outras coisas, logo a picá-las. eh, eh! tinha esse dom, mas não deixava também, nos dias de festa atender aos convites, e como homem literário que era, ia abrilhantar os saraus literários. quer num convento, quer noutro. - sim. -> portanto era um homem que tanto cambava para um lado como descambava para outro, como seguia em frente. tinha os seus, a sua maneira de ser. não era um homem certo. - hum, hum. -> Camilo não era um homem certo. - sim. mas finalmente, então, Ana Plácido terá tido um papel positivo ou negativo na vida de Castelo Branco? -> ora bem - na sua vida pessoal, no seu equilíbrio. -> no seu equilíbrio de... ele rever-se no lar, o homem agasalhou-se. não há dúvida que manteve-se ali fiel ao, ao lar, lutando sempre com a pena para fazer sobreviver ao lar, porque não havia outro rendimento que não fosse a pena dele. eh, dona Ana era uma senhora da, eh, da alta sociedade que, eh, oferecia muitos banquetes, e sobretudo lanches ao, ao, ao Garrett, ao, ao Guerra Junqueiro, e... ao Dom António Feliciano de Castilho - que até está lá um par[...], um padrãozinho de mil oitocentos sessenta e seis, a atestar a visita dele a Seide - e etc. e então ela oferecia es[...], esses lanches, fumava charuto, oferecia uma caixa de charutos aos que fumavam, e tudo isso era uma despesa... fabulosa. ainda hoje, nas nossas casas, se nós metermos muito na sociedade a, a dar brindes de coisas, a, o, as nossa bolsa começa a esvaziar-se. ora na casa de Camilo era na mesma. eh, o Camilo tinha que sustentar isso e ela então com as suas fidalguias, com as suas burguesias, lá sustentava, ia-se polindo, não é, ia até escrevendo, que ela também, eh, tem um livro intitulado "Luz Coada por Ferros".